Ministério da Saúde sugere que médicos cometeriam crime por aborto após 22 semanas

 

Mulheres defendem a descriminalização do aborto em São Paulo.

Ministério da Saúde sugere que médicos cometeriam crime por aborto após 22 semanas

Código Penal e STF não estabelecem prazos para o aborto nos casos permitidos. Ainda assim, manual do governo contraindica o procedimento


A divulgação de um manual do Ministério da Saúde com informações distorcidas e que nega a possibilidade de aborto legal no Brasil foi alvo de críticas de entidades médicas e organizações da sociedade civil nas últimas semanas. Entre os pontos de maior preocupação está a afirmação de que os abortos em caso de estupro só não seriam crime se realizados até a 22ª semana de gestação. Após o período, médicos poderiam ser alvos de investigação, sugere o documento.

No entanto, o Código Penal não prevê qualquer limite de semanas para os casos em que o procedimento é permitido — quando não há outro modo de assegurar a vida da gestante e se a gravidez é resultado de um estupro. Também não há punição nem qualquer prazo limite se o feto é anencéfalo, conforme entendeu o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. Nesses casos, fala-se em aborto legal, que deve ser assegurado pelo sistema público de saúde. De acordo com especialistas consultados pelo JOTA, o documento induz ao erro e joga ainda mais pressão sobre os médicos.

O manual “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento” foi elaborado pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas, liderada por Raphael Câmara. Em audiência pública nesta terça-feira (28/6), marcada na semana passada após o início das críticas, Câmara defendeu o documento lançado pelo governo Jair Bolsonaro (PL), que vem fazendo acenos para sua base conservadora em ano eleitoral.

Ele disse que o abortamento não é um grave problema de saúde pública, já que morreriam poucas mulheres em decorrência da situação – segundo dados do SUS usados pelo próprio Ministério, houve 411 mortes relacionadas ao procedimento entre 2015 e 2021, mas não há dados no Brasil sobre abortos inseguros. “Como obstetra, para mim não dá essa sociedade que acha que é normal matar bebes na barriga com sete, oito, nove meses”, afirmou.

Na semana passada, um grupo de 78 organizações, como Anis, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e Católicas pelo Direito de Decidir já haviam enviado uma carta ao Ministério pedindo pela revogação do documento. Elas enviaram também recomendações para a formulação de políticas públicas relacionadas ao aborto legal. A Procuradoria-Geral da República também já recebeu pedidos para que o manual seja revogado.

Durante a sessão, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) foi uma das entidades a pedir pela revisão do documento. O manual do Ministério trata de casos de aborto espontâneo e induzido — na visão de especialistas, ele mistura os dois conceitos para limitar o abortamento legal por médicos. Diferentemente de documentos anteriores sobre o tema, diz que todo aborto no Brasil é crime.

“Não existe aborto ‘legal’ como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno”, diz o texto, direcionado a “gestores, serviços e profissionais de saúde”.

Manual coloca limites

Segundo o documento do Ministério da Saúde, há uma limitação para a realização do aborto mesmo nos casos de estupro, risco de morte para a gestante e de anencefalia do feto — mesmo essa limitação temporal não estando prevista em lei.

O texto diz que não há sentido na realização de “aborto com excludente de ilicitude” em gestações que ultrapassem 21 semanas e 6 dias. “Nesses casos, cuja interface do abortamento toca a da prematuridade e, portanto, alcança o limite da viabilidade fetal, a manutenção da gravidez com eventual doação do bebê após o nascimento é a conduta recomendada”, afirma.

Assim, diz que o aborto legal não independeria da idade gestacional; ele precisaria atender o conceito da viabilidade, marco temporal no qual o feto apresenta alguma capacidade de manutenção da vida fora do ambiente uterino. “O nascimento de um ser humano a partir dessa época é conceituada como parto prematuro e não mais como abortamento”, afirma. O documento aponta que o nascido às 22 semanas tem 4% de chance de sobreviver.

Nesse ponto, são misturados os entendimentos sobre aborto induzido pelos médicos e a perda gestacional. Apenas no segundo caso, há diferentes nomes para o momento em que acontece, delimitando como aborto espontâneo e, em seguida, parto prematuro.

“O aborto tratado no Código Penal trata de terminar a gravidez com técnicas variadas pelos médicos, o que pode ser feito a qualquer momento. O manual induz ao erro”, afirma o ginecologista obstetra Cristião Rosas, coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir.

De acordo com a Febrasgo, o abortamento é um procedimento, e não tem relação com a idade fetal. ‘”O conceito de aborto induzido é a ‘perda intencional da gravidez intrauterina por meios medicamentosos ou cirúrgicos’, e não tem relação com viabilidade fetal, ou seja, não está atrelado à idade gestacional ou peso fetal”, diz em nota da semana passada.

Para o Ministério, a limitação não deixaria margens para o desamparo às vítimas de violência sexual que ultrapassaram as 22 semanas de gestação: “Ao passar das 23 semanas gestacionais, inicia-se o processo de um parto prematuro onde não
cabe o amparo legal que prevê a eliminação da vida intrauterina por meio da destruição do produto da concepção nos casos de violência sexual”. Assim, o entendimento é que, por ter mesmo que mínimas chances de sobrevida, o embrião precisaria ser protegido pelo direito constitucional à vida.

Pressão sobre os médicos

Já havia uma pressão sobre os médicos mesmo antes do atual documento do Ministério da Saúde. Isso porque a Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento, cuja edição mais recente é de 2012, já estabelecia o limite de 22 semanas para a realização do abortamento sem ordem judicial por serviços de atendimento a vítimas de violência sexual. A orientação era que, ultrapassado esse período, houvesse autorização da Justiça.

Mas, como já mencionado anteriormente, o Código Penal não estabelece limite de semanas. Na semana passada, ao orientar a realização do aborto legal para uma menina de 11 anos em Santa Catarina, o Ministério Público Federal apontou essa contradição e defendeu que há uma ilegalidade em estabelecer o limite de idade fetal para o procedimento.

“‘Normas técnicas’ expedidas por órgãos da administração direta ou indireta não possuem força de lei, sendo considerados atos normativos secundários, do Poder Executivo”, diz a procuradora da República Daniele Cardoso Escobar na recomendação. “A limitação temporal de 22 semanas de gestação, prevista na ‘norma técnica’, não encontra previsão legal, restringindo direito previsto na legislação ordinária, ao tempo em que afronta o princípio constitucional da legalidade”, afirma.

Apesar da noção de que esse tipo de documento não supera a previsão do Código Penal, as novas normas jogam pressão sobre os médicos que atuam em serviços de referência para o aborto legal. Hoje, já é comum que eles demandem autorização judicial para os atendimentos além das 22 semanas.

“Os médicos lidam com insegurança jurídica, então muitos preferem ter decisão do lado deles. O objetivo desse tipo de orientação sobre crime é causar insegurança e medo nos profissionais que atuam”, diz Rosas.

Segundo ele, há consenso científico sobre a segurança para as gestantes em realizar abortos após o período indicado, nos casos previstos por lei. Inclusive, o risco à vida de adolescentes pode ser quatro vezes maior quando a gestação é levada ao final. Meninas entre 10 e 14 anos também têm cerca de cinco vezes mais chances de morrer por complicações no parto do que mulheres na faixa dos 20 anos de idade.

Ele aponta que, desde as últimas recomendações do Ministério da Saúde, de 2012, houve uma explosão de evidências científicas sobre a segurança do uso do medicamento na indução e o avanço dos procedimentos cirúrgicos, com experiências mundiais que estão compiladas em diretriz da Organização Mundial de Saúde (OMS) publicada sobre o aborto neste ano.

Porém, o manual brasileiro inclui recomendações de procedimentos médicos contraindicados por essa avaliação mais recente, como a curetagem, e não inclui medicamentos vistos como mais avançados pela classe médica. A OMS também não usa o patamar das 22 semanas entre suas indicações de melhores práticas.

Na audiência pública, o Ministério da Saúde falou que deve revisar o material e divulgar uma nova versão. Além da discussão sobre o documento, o encontro foi questionado pois não teria movido esforços de incluir especialistas do setor ou organizações que haviam sugerido mudanças no texto. “O espaço não foi construído com nenhuma transparência democrática”, afirma a advogada Gabriela Rondon, do Instituto de Bioética. Ela defende que não haja limitação ao aborto legal, seguindo o Código Penal. Saiba mais...

LETÍCIA PAIVA – Repórter em São Paulo, cobre Justiça e política. Formada em Jornalismo pela Universidade de São Paulo. Antes do JOTA, era editora assistente na revista Claudia, escrevendo sobre direitos humanos e gênero. Email: leticia.paiva@jota.info

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